Programa Universidade para Todos: democratizar ou mercantilizar?

Publicado: 21/03/2013 por caioha em Educação Pública, Política Brasileira
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   A expansão das matrículas do ensino médio, o recrutamento de força de trabalho pelo capital e as mobilizações de estudantes e docentes em prol de uma reforma universitária tornaram improrrogável a questão da democratização do acesso à educação superior. O crescimento econômico motivou a emergente classe média a investir – como o passaporte para a mobilidade social – em cursinhos pré-vestibulares para garantir o acesso de seus filhos à universidade. Os estudantes excedentes (aprovados, mas sem vagas) saíram às ruas em protestos que abalavam a imagem do “Brasil potência”.
   Diante das pressões, o governo argumentou que as vagas públicas não poderiam atender prontamente à demanda. “Sensível” aos reclamos sociais, induziu a abertura de vagas no setor privado, em instituições universitárias ou não (uma firula, diante da causa democrática), por meio de pesadas isenções tributárias e empréstimos estudantis fortemente subsidiados pelo poder público. Assim, o anseio dos estudantes poderia ser realizado “aqui e agora”. Ao mesmo tempo, contemplaria os interesses capitalistas dos empresários da educação, segmento que demonstrara força política no processo de elaboração da Lei de Diretrizes e Bases.
    Evidentemente, referimo-nos até aqui à ditatura civil-militar de 1964. O sistema de bolsas foi colocado em prática pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que determinava a criação de bolsas de estudo restituíveis, e pelo artigo 20 da Constituição de 1967, que vedava à União, aos estados e aos municípios a cobrança de impostos sobre renda, patrimônio e serviços dos estabelecimentos de ensino. Houve uma acentuada expansão das matrículas no ensino superior: entre 1960 e 1980, de 200 mil para 1,4 milhão (cerca de 500%), mas o grande impulsionador da expansão foi o setor privado (crescimento superior a 800%), que partiu de um patamar de 42% das matrículas no início dos anos 1960, alcançando 50% em meados dos 1970 e, em 1980, sendo responsável por 63% do total. A solução emergencial do problema do acesso expandiu e diferenciou as instituições de ensino superior privadas, legitimando a contrarreforma de 1968, calibrada pelos Acordos MEC-Usaid. Ao final da ditadura, o sistema público assumiu função complementar ao privado. As frações mais pauperizadas teriam de se conformar com cursos aligeirados, adequados para formar o exército industrial de reserva.
    A crítica à ditadura colocou em evidência o perverso modelo privado-mercantil: embora ofertando cursos, em geral sem qualidade, os lucros do setor ampliaram exponencialmente sob o manto da filantropia. Daí por que a luta na Constituinte ter priorizado a consigna: verbas públicas para as escolas públicas. Derrotas e avanços coexistem no capítulo da educação da Carta de 1988. O artigo 207 consagra a universidade como uma instituição autônoma e referenciada na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, mas o artigo 209 estabelece que o ensino é livre à iniciativa privada, e os artigos 150 e 213 admitem a possibilidade de repasse de recursos públicos (apenas) para as instituições “sem fins lucrativos” (comunitárias, filantrópicas e confessionais).
   Fernando Henrique Cardoso institucionalizou o caráter privado-mercantil das “particulares” (Decreto n. 2.306/1997). A expansão, doravante, foi liderada por essas instituições com fins lucrativos (em 2008, das 2.016 privadas, 1.579 eram particulares). Após o boomdas matrículas privadas entre 1995-1999, o setor educacional foi afetado por uma crise semelhante à dos anos 1980: não havia mercado consumidor, com renda, para comprar o serviço educacional. Nesse contexto, o poder do atraso se impôs. O resgate das organizações privadas dar-se-ia em nome do interesse público. Tratava-se de democratizar o acesso “aqui e agora”, ainda que financiando as instituições privadas. O diagnóstico do governo era de que o setor público não daria conta e era pouco eficiente nos gastos. O setor privado seria auspiciado por uma dupla medida já conhecida: a) oferecer isenções tributárias para as organizações privadas (Programa Universidade para Todos), ultrapassando até mesmo os limites da Constituição (ao conceder isenções às instituições com fins lucrativos) e b) turbinar o programa de empréstimos subsidiados para os clientes (Fies).
    Muitos estudantes se beneficiaram do ProUni. E devem ser apoiados em seu direito à educação superior. Não resta dúvida de que outros muitos se beneficiaram da expansão e das bolsas na ditadura. O problema é que tal política destrói qualquer projeto democrático de nação. A opção pelo setor privado leva ao encolhimento do setor público. Em 2002, apenas 27% das matrículas eram públicas; em 2010, 25%. Difunde-se um padrão de educação minimalista e desvinculado das necessidades do país: apenas 0,002% das bolsas do ProUni foram para Geologia e 0,6% em Medicina, por exemplo; o grosso se destina a cursos de “humanidades”, tecnológicos de curta duração (sem relação com as áreas tecnológicas duras) e ciências sociais aplicadas, cursos fast delivery diploma.
   O próprio nome do programa é enganoso: não é universidade para todos, já que as vagas estão dispersas em todo tipo de instituição de ensino superior, inclusive nas mal avaliadas pelo MEC. É de baixa efetividade. Em 2005, apenas 77% das vagas anunciadas em maciças campanhas publicitárias foram ocupadas. Em 2008, apenas 58% das vagas anunciadas. O custo-aluno para o Estado é enorme, muito acima da mensalidade média das empresas: a) organizações com fins lucrativos: R$ 436; custo do bolsista: R$ 495; b) sem fins lucrativos beneficentes: R$ 597; valor pago por aluno: R$ 1.043 (2006).
Uma diferença em relação aos anos da ditadura precisa ser realçada. Atualmente, o setor é controlado por corporações e fundos de investimento com grande participação de capital estrangeiro. Não se trata mais de empresas familiares, mas de negócios que compõem o rol de investimentos especulativos do setor financeiro. Permitir, em nome da democracia, que a juventude brasileira permaneça prisioneira dessa educação mercantilizada é algo brutal. Urge mudar a direção da política educacional. E o eixo tem de ser público e universal. Uma universidade aberta a todos os que possuem um rosto humano. A história se move!
Roberto Leher
Professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, além de pesquisador do CNPq
comentários
  1. chicop disse:

    um texto breve mas que contextualiza bem a situação da nossa educação superior. hoje a universidade pública se restringe para uma pequena parcela da população, classes mais abastadas que mobilizam algum poder para dificilmente mantê-la contra a invasão do privatismo. essa luta, embora justa, se dá na defensiva e não consegue avançar em direção à universalização. enquanto isso as classes emergentes, historicamente excluídas do ensino superior público, batalham no mundo do mercado para tentar ascender socialmente. educação superior hoje pode ser um privilégio, uma mercadoria, mas está longe de ser um direito.

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